terça-feira, 19 de julho de 2011

A ÚLTIMA SAIDEIRA

                                                    Foto: arquivo infonet

Na tarde desse domingo, dia 17, Cleomar Brandi - jornalista, cronista e boêmio - se despediu dos inúmeros amigos  em Aracaju, onde exercia ativamente a sua profissão.

Nascido em Ipiaú (BA), Cleomar iniciou sua carreira profissional no Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (Irdeb), quando foi aprovado em primeiro lugar, em um concurso público. No início da década de 80, mudou-se para Aracaju (SE) para fazer parte da equipe que iria pôr no ar a TV Aperipê. Desde então, desenvolveu o seu trabalho em diversos meios de comunicação em Sergipe, como diretor de jornalismo, na Aperipê TV, e pauteiro, no diário Jornal da Cidade, nos quais atuava até recentemente. Em 2009 ele lançou ‘Os segredos da Loba’, uma coletânea de textos escritos durante os 32 anos de jornalismo.

Um ser humano ímpar no seu modo de ser e de encarar a vida, pessoa simples, demonstrava, em suas palavras e seus textos, a sabedoria-ética-dignidade com que compunha, de modo incansável, o seu cotidiano. Quem teve o privilégio de conhecê-lo em diferentes etapas de sua vida e, com ele conviver, sabe o real significado de alguém conseguir ser feliz em circunstâncias tão adversas de saúde...     
Abaixo, uma crônica de sua autoria: ela foi distribuída aos presentes que velavam o seu corpo. A seu pedido, enquanto isso, deveriam beber e cantar, reverenciando a VIDA:

A ÚLTIMA SAIDEIRA
por Cleomar Brandi

“Um dia, uma noite, algum boêmio sempre pede a saideira e os garçons nunca gostam dessa história. Mas, o certo, é que sempre chega a hora da última saideira. Dessa vez, chegou minha hora, meu último gole.

Eu, pessoalmente, não diria que estou indo contrariado. A hora e a vez de Matagra. Afinal de contas, soube beber com sede de aprendiz o melhor que havia na taça que a vida me ofertou. Uma taça lavrada, rescendendo a conhaque.

Nadei nas águas mornas de Arembepe, conheci Raulzito quando ele ainda se juntava aos seus panteras, com Thildo Gama e outros, vi Caetano, Moraes Moreira, Pepeu no encontro de trios, enquanto o poeta apontava, com a mão, a Baía de Todos os Santos. Arpoei caramuru, tirei polvo da toca, garanti as moquecas da minha adolescência, fui recordista de natação, ungido por Oxalá.

Fui bom de porrada, fiz meu nome nas turmas de rua do Lago dos Aflitos, joguei futebol e, nos babas, ganhei o apelido de “Leonam” onde sou conhecido assim até hoje. Fui batizado nos puteiros da Ladeira da Montanha, conheci Mestre Pastinha e Mestre Bimba, vi meu “Bahêêêa” ganhar para o escrete do Santos e Waldemar Santana encher Hélio Gracie de porrada.

Conheci os mistérios dos becos e ladeiras da velha Salvador, fui amigo de Cid Teixeira, Capinam, Guido Guerra e Luis Orlando, encarei dois anos de internamento no Hospital das Clínicas, tive febres diárias, colecionei escaras coloridas, vibrantes e sangrentas, decepcionei laudos médicos, busquei o tempo que eu queria da minha vida.

Um dia, uma brisa morna me carregou para o colo da bela Aracaju, onde eu soube ser feliz, no tempo que me restava. Aqui, bebi os melhores conhaques da minha vida, amanheci nas libações madrugadoras com o amigo-irmão José Eduardo Sousa, soube ouvir o violão de Pantera, a melodia de Paulo Lobo, o blues de Soyan, as conversas de Mariano e Bel nas andanças do Imbuaça. Aqui, plantei amigos, colhi irmãos, como o grande parceiro Gilson Sousa. Aqui, ouvi a melodia do Cataluzes, comi o melhor pirão de caranguejo do Pastelão, me fartei dos mistérios culinários da cozinha de Camilo.

Nessa terra, amei mulheres que reverencio até hoje. Fiz poemas para algumas, embriaguei-me com outras. Como esquecer do sorriso de Arlinda, que ganhou o mundo e acabou na Sorbonne? Como esquecer do sorriso sacana de Ana Paula? E os finais de tarde no Mosqueiro? E o chiado da tainha na frigideira do Bar de Nem? E a amizade terna da turma do JORNAL DA CIDADE e da Aperipê TV.

Como esquecer da lealdade de meus irmãos a vida inteira? E de Christina Brandi, cunhada que se tornou irmã? E da cumplicidade do irmão Chico Neto, que trilhou a vida inteira os caminhos do bom jornalismo, ético e honesto?

Um dia, o velho barril de carvalho pinga sua última gota de conhaque. E o poeta se despede de tudo, sem tristezas, nem vexames. Apenas sabendo que cumpriu seu papel com dignidade, com honestidade e com um brilho de crianças nos olhos.

Quem sabe, eu encontre o amarelo dos girassóis nesse novo caminho?

PS: Os amigos estão convidados para a última saideira no Bar do Camilo, assim que terminar o sepultamento. Já está pago.”

Axé, Cleo! A festa, agora, é do lado de lá!!

2 comentários:

  1. Este soube levar a vida como uma atividade lúdica, sem ressentimentos e extraindo poesia e fraternidade de tudo.


    Ricardo Mainieri

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  2. Pois é, poeta! Cleomar, embora com limitações físicas de mobilidade, soube levar a vida com alegria, espirituosidade, coragem e dignidade. Soube ser amigo inesquecível!

    A festa agora é, mesmo, do lado de lá...

    Abraço,
    Jussara

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