sábado, 27 de fevereiro de 2010

QUE SAUDADE...

                              Van Gogh - Café
                             Texto de José Antônio Oliveira de Resende*
Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque a família toda iria visitar algum conhecido. Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite.

Ninguém avisava nada, o costume era chegar de pára-quedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres, a visita. Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.

- Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre!

E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos. Aí chegava outro menino. Repetia-se toda a diplomacia.

- Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!

A conversa rolava solta na sala. Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre. Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre.

Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro... Casa singela e acolhedora. A nossa também era assim.

Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha, geralmente uma das filhas e dizia:

- Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.

Tratava-se de uma metonímia gastronômica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite... Tudo sobre a mesa.

Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As gargalhadas também. Pra que televisão? Pra que rua? Pra que droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança... Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam.... Era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade...

Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida. Era assim também lá em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa.. A mesma alegria se repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta. Olhávamos, olhávamos... Até que sumissem no horizonte da noite.

O tempo passou e me formei em solidão. Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail... Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa. Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:

- Vamos marcar uma saída!...

Ninguém quer entrar mais. Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.

Casas trancadas. Pra que abrir? O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, de manteiga, dos biscoitos do leite...

Que saudade do compadre e da comadre!
*******

*José Antônio Oliveira de Resende - professor de Prática de Ensino de Língua Portuguesa do Departamento de Letras, Artes e Cultura da Universidade Federal de São João del-Rei.
Imagem: Picasso

3 comentários:

  1. Que saudade deixam esses tempos... Ainda ontem conversava com uma amiga sobre o tempo (não tão distante) de esperar o carteiro na porta, comprar revista capricho, uma das únicas maneiras de saber notícias do mundo adolescente...
    E hoje, sem fronteiras, o mundo se debate na falta do contato em família.
    Saudade do compadre e da comadre...

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  2. Que texto mais lindo! Reportei-me à minha infancia... Retrato fiel.
    Hoje as pessoas estão muito ocupadas com os afazeres e se esquecem de viver e de conviver. Não vou mais nos meus amigos, às vezes nem escrevo, porque estão todos envolvidos com seus projetos, seus mestrados, seus doutorados...
    Amei, Jussara! Vou voltar sempre para deliciar-me com suas postagens.

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  3. Porta da rua sempre aberta
    Janelas abertas
    Coração aberto!
    Tudo pronto para nos receber!

    Íamos juntos
    Às festas
    Em dias comuns
    Em dias turbulentos
    Ajudar um amigo
    Visitar um enfermo
    Visitar uma família em momento de luto...

    Em todos os momentos as visitas eram (São)uma forma de amar mais o ser humano e fazer parte de sua vida!
    Seu texto, Jussara, me fez, mais uma vez, sentir saudades!

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