terça-feira, 15 de junho de 2010

JANELA DE MARINETTI (Waly Salomão)


                                       Imagem: http://cristalpoesia.no.sapo.pt/waly.htm#janela
cidade dura e arreganhada para o sol
como uma posta de carne curtida ao sal -
onde na rua do maracujá adolesci
e, louco, sorvia a vida a talagadas de cachaça
de alambique.
graveto-do-cão pitu luar do sertão.

uma ponte corta um rio de fazer contas.
arco e flecha de Sultão das Maltas
mira certeira as ventas do dragão lá na lua.
uma seta e um nome tupi de cidade em uma placa
- é, é, jequi, cesto oblongo de cipó pra pegar peixe
n'água, é, é. -
e a rua de paralelepípedo e a rua de chão batido
e a outra rua metade paralelepípedo metade chão batido
lembra jurema pé de joá cacto mandacaru.
fruta de palma perde os espinhos
mergulhada dentro da bacia cheia de areia.
bolo de puba umburana flor de sisal.


cidade dura e arreganhada para o sol
como uma posta de carne curtida no sal,
meu museu do inconsciente
é um prédio mais duro de roer
mais arreganhado para o sol
mais curtido nas salinas do canal lacrimal.

o anúncio ditava:
..."a farmácia estreita da rua larga"...
abro minha caixa de amor e ódio
abuso da enumeração evocativa,
desando a disparar:
rua alves pereira...
rua apolinário peleteiro...
rua do cochicho...
distingo bem o caroço duro de umbu chupado
da bostica, da bostiquinha redondinha
que nem biscoito de goma
que a cabra da caatinga fabrica.
de pouco vale agora essa sabença.
o chão e tudo é só paisagem calcinada
e tela deserta e miragem e cena envidraçada.

janela de marinetti
sem vista panorâmica
me lixo pro louvre da vitória de samotrácia
apois aposto na corrida futurista da preá
pego carona na rasante de um urubu
diviso lajedo molhado espelhando umbuzeiro gravatá.
um aleijada esmola e merca rolete de cana
três ararsa dois micos uma jibóia enrondilhada.
uma velha choraminga e mói dez tostões de erva
mais cinco mil-réis de sementes de urucum.
jegues carregados de panacuns.
pau-ferro rolimã curral dos bois.

uma ponte corta um rio de fazer contas.
pego as contas dos olhos e as enfio
nas platibandas das casas coloridas.
rua das pedrinhas... borda da mata...
guito guigó... bolha de mijo de potó...
a profa. teresinha fialho
e a família inteira de doutor fialho
no poleiro das galinhas verdes de plínio salgado.
verdes, verdes. e o amarelo aceso do enxofre
no fundo da talha d''agua-de-beber.
que não escutei "queto!", ouvir não ouço "coitado!".

urubuservar a vida besta do alto do urubuservatório.
por amor de quando fera e peixe e planta e pedra e ave
e besouro e estrela e estrume e grão de areia.
cada qual de per si,
e os jeitos e as qaulidades
das palavras
das quimeras
dos seres,
separados ou em uníssonos
silibavam oráculos...

a ti confesso, janela de marinetti:
comparacem até o mirante
mínimas brasas inquietas
catapultadas pelas criciúmas
dos rios pretos enchidos dos cafundós-do-judas
(minúcias de azinhavres,
línguas de trapos e de caroços,
de troncos e tocos,
hemorragias de baronesas e molambos);

na porta da casa facista
o audaz tenor bambino torregrossa assassina lua e luar.
a acha de lenha do passado figura fósforo queimado
carvão apagado
tição perdido e achado aceso
(no meio-dia calcinado carvão forja diamante)
que crepita confundido com as paredes
internas
externas
do porão da bexiga
que crepita fundido no fole refenfem
fem fem
femfem
no resfôlego da tripa que toca gaita,
a tripa gaiteira da folia dos magos reis do boi janeiro.
quem foi que disse que janeiro não saía
boi janeiro tá na rua com prazer e alegria.

essa alegria, motor que me move.
nascido com o auxílio das mãos da parteira mãe jove.
para todo sempre confino
o registro da palavra rotina
com o vento e a chuva
com o plúvio e o pneuma
machetados no registro
da palavra enigma
Vista panorâmica de Jequié, Cidade-Sol
Cidade-Sol.
Heliópolis,
Baalbeck
da minha infância desterrada.
IN:  Algaravias, Editora 34

Waly Salomão:

"Eu nasci em Jequié, que é uma cidade aqui bem perto da caatinga.
Eu sou filho de um sírio, meu pai veio garoto da Síria, atrás do pai dele, que tinha vindo para Jaguaqüara, na Bahia. Meu pai veio bem garoto, 14 anos, atrás do pai dele e não o encontrou. Foi para Jequié, começou a trabalhar. Minha mãe tinha vindo de outra cidade do sertão, Carruados, para morar em Jequié e os dois se encontraram e se apaixonaram. Construíram a vida juntos. Meu pai depois morreu muito cedo.

O poema "Janela de Marinetti" é minha lembrança, os nomes das ruas, as vivências, as pessoas, é claro que com nome trocado.

"Janela de Marinetti", vou te dizer, tem duplo sentido. Tomazo Marinetti, foi um grande teórico do futurismo. Dos grandes movimentos de vanguarda que movimentaram o século XX, o futurismo foi o primeiro grande deles. Influenciou o Fernando Pessoa, o Mário de Sá Carneiro. Pois é, Marinetti veio para o Brasil e a chegada dele ao Rio de Janeiro, as atitudes, as frases, eram todas de provocação. É desafiar o burguês, é bater, dizer frases incríveis. Ele gostava de carro de corrida, de tudo que fosse sinal de velocidade, de extensão de velocidade: o futurismo anunciava tudo isso.

Mas acontece que a vinda dele ao Brasil, ao Rio de Janeiro, foi um escândalo bem grande, ele adorava provocar escândalos, ele adorava dizer frases que chocassem, era totalmente assim. Essa vinda dele coincidiu com a introdução do transporte coletivo, do ônibus, na Bahia, Alagoas e Sergipe. Aí, o ônibus pegou o nome de Marinetti, em uma homenagem irônica ao grande teórico do futurismo. Isso é comum".

5 comentários:

  1. Waly era um produtor apaixonado pela vida. Pena que ela lhe abandonou relativamente cedo.
    Uma poesia de reminescências com seu toque lisérgico, hiperbólico, intenso.
    Bom, vc. ter trazido, novamente, este monumento da poesia baiana e brasileira.

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

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  2. Pois é, Poeta! Waly é natural daqui, de Jequié e esse poema retrata bem a realidade dessa "cidade dura e arreganhada para o sol, como uma posta de carne curtida ao sal..."

    Ele, como ninguém soube retratar essa "cidade-sol" cujo verão, de 42 graus, em média, a faz assemelhar-se a uma posta de carne de sol arreganhada... bem verdade!

    Agradecida pela leitura atenta e pelos elogios ao nosso reconhecido poeta tropicalista.

    Abraço, tb.

    Jussara

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  3. Sou estudante de Artes da UESB e estou preparando um seminario sobre a vida de Waly.
    Não conhecia esse poema.Muito lindo!
    Gostaria de saber se vc tem mais poemas, relatos da vida Dele.. Enfim, algo q possa me ajudar.
    Grata!

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  4. Lindo esse trabalho de vocês, como Jequiense fico orgulhoso pela perpetuação das palavras fecundantes de WALY. Salve a todos.

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  5. Lindo esse trabalho de vocês, como Jequiense fico orgulhoso pela perpetuação das palavras fecundantes de WALY. Salve a todos.

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