Por Fauze Midlej
(Texto lido em reunião do Rotary Club de Ipiaú em novembro de 1983, ocasião em que homenageou o pioneiro Elias Midlej)
"Meus amigos, vou lhes contar uma história. Uma história que coincide com a história de Ipiaú.
Elias e Vitória Midlej
Era uma vez um casal de jovens, ele libanês, de Beirute, ela egípcia, de Alexandria. Ele com 19 anos, ela com 14. Ele de classe média, ela de origem mais nobre, cujo pai possuía até iate no Nilo. Conheceram-se, casaram-se e tiveram uma filhinha.
Atraídos por notícias de parentes, a respeito de um também jovem país de terras ricas, com muito ouro e diamantes, embarcaram em um navio, via Marseille, e vieram dar nas terras das Lavras Diamantinas, na Bahia. Motivos outros, que só o destino poderá explicar, conduziram-nos a um lugarejo chamado Rapa-Tição, via Mutuns, em busca de outro filão de ouro denominado cacau. Aqui, em Rapa-Tição, à luz de fifó e fogão de lenha, continuaram uma verdadeira odisseia, própria de jovens cheios de ambição e de esperança, digna de verdadeiros bandeirantes.
A primeira e grande dificuldade traziam de sua origem, a língua árabe, de difícil compreensão e escrita complexa. Como maior bandeira, a religião católica, esta sim, elemento de integração à nossa gente. E foi essa bandeira, somente ela, que lhes deu força para suportar as intempéries que o desconhecido lhes oferecia a cada momento. Salvou-lhes a solidariedade tribal, pois, para sobreviver, integraram-se na comunidade árabe que se formou no sul do nosso Estado.
Aqui nasceram mais nove filhos, completando dez de sua prole. Aqui fizeram de tudo para sobreviver. De quitandeiros a fazendeiros, e também donos de bar. Aqui fundaram, com seu sobrinho Zé Maron, a primeira loja, a Casa Kaytuli, com 14 portas.
Lembro-me do seu ideal máximo: criar os filhos com honradez e dar-lhes educação escolar. O primeiro objetivo foi alcançado em toda plenitude. O segundo, por motivos independentes de sua vontade, apenas em parte. Naquela época, a universidade era privilégio de poucos. E fui um deles, mas, infelizmente, o único.
Permitam-me falar um pouco de mim. Nasci em 1930. Não mais em Rapa-Tição, mas sim em Rio Novo. Lembro-me dos lampiões de gás. Lembro-me de “Zé Magrin” acendendo-os ao entardecer. Lembro-me das “tapagens” que fazia nas ruas, com barro, para represar as águas da chuva. Dos tamancos com solados de pneus, para não atolar na lama e no barro. Lembro-me do “Quebra-Viola”, da Rua da Quarana, do primeiro campo de futebol, das missas aos domingos competindo com as peladas do areião. Dos jegues transportando água do Rio de Contas, para o banho, e do “Ouro”, para beber. Dos primeiros paralelepípedos, colocados por mestre Deoclécio. Do Urânio, construindo a usina de luz que era apagada às onze horas da noite. Do meu padrinho, o lendário Pe. Phileto, de sã generosidade, que me dava “dois mil réis” para bater o sino. Da professora Lozinha no compromisso de educar e da sua palmatória. Do primeiro carro adquirido por “Zé Miraglia”. Do cinema mudo, com filmes de Tom Mix e Buck Jones. Da primeira namorada, do primeiro beijo, como diria Chico Buarque…
A vontade férrea e a obsessão de formar os filhos, ou o destino, induziram-nos a buscar o Rio de Janeiro, mas esse mesmo destino os trouxe de volta à sua terra, as suas verdadeiras raízes. Nessa nova aventura o seu desejo foi atendido, pois, pelo menos um de seus filhos obteve o diploma superior.
Aqui retornaram e viveram mais alguns anos, até que a saudade e o chamamento dos filhos os levaram a Salvador.
O amor à família superou e venceu o amor à sua terra, já agora Ipiaú.
Saíram contra a vontade, a contragosto, com saudade de seus amigos, pois tinham muitos. A saudade de Ipiaú reduziu a sua existência. Fora de Ipiaú sentiam-se como peixes fora d’água. Em Salvador, vieram a falecer, ele com 76 anos e ela, algum tempo depois, com 83. Em seu clã, contam-se dez filhos, 38 netos, 64 bisnetos e 12 tataranetos, totalizando 124 descendentes.
Mas deixaram seu exemplo, pleno de virtudes e poucos defeitos. Suas qualidades são inumeráveis, mas destaco, acima de todas, a honradez e a lealdade. Ele, homem probo, honesto. Dedicou sua vida à família e amou esta terra, que era a sua terra. Ela, mulher ímpar, que desde os 14 anos abandonou família, dinheiro e pátria para seguir aquele a quem dedicou a vida.
Os nomes desses jovens-anciãos são mais que nomes – são o próprio símbolo da vida que ambos construíram no exercício do bem e do amor – papai chamava-se Elias, mamãe chamava-se Vitória.
Agradeço a honrosa e justa homenagem prestada ao nosso querido pai, em meu nome e de minha família, mas não sem antes fazer alguns registros. O primeiro, a sua companheira, e o segundo, à saudade de nossos queridos irmãos Ibrahim e Vivaldo.
Ao finalizar, repito a citação de uma grande amiga: “Essa família é uma fogueira de corações”. Em nome dessa fogueira, muito obrigado!"
Ipiaú, 26 de novembro de 1983.